quinta-feira, 22 de agosto de 2013

NOSSO PAI DE CADA DIA





Neste último Dia dos Pais, fiquei lembrando as pequeninas coisas que caracterizavam nosso pai, essa figura querida que lembramos com tanto carinho. Lembro-me dele à cabeceira da mesa presidindo as refeições. Tinha um modo elegante de servir-se, usando garfo e faca como mandam as etiquetas.  Ele veio de um lar muito simples, de gente da campanha. Quem o ensinou?
Gostava de vê-lo pôr farinha no feijão e misturá-lo com laranja de umbigo.
Após o almoço, cada um de nós chegava até ele para receber a colherada de emulsão de Scott seguida de um gomo da fruta. Assim, não dava para sentir o gosto do remédio que era tomado sem queixa. Papai temia as gripes e gostava de saber-nos prevenidos contra elas. Além das preocupações com a doença, as despesas com os remédios ameaçavam o modesto orçamento da família.
Papai gostava de frutas, e seu pequeno pomar tinha um pessegueiro (seu orgulho) que dava pêssegos gostosíssimos. Que só ele apanhava e fazia questão de oferecer-nos com muito orgulho e satisfação. O primeiro colhido na época ficava um dia ou dois no guarda-louça da cozinha esperando amadurecer bem. Quando chegava a hora, ele descascava-o com todo o  cuidado para reparti-lo conosco. Doty, a mais gulosa, não via a hora de poder comê-los inteirinhos.
Nas manhãs de domingo, antes da Missa das dez, nós o víamos fazendo a barba diante do espelho pendurado na parede da copa-cozinha. Noutras manhãs, perdíamos o “espetáculo”, porque era a hora de ir à escola. Tão pequeno e ficava bem alto, fora de nosso alcance. O barbeador, antes do descartável de hoje, um aparelho que se abria ao apertá-lo para colocar a lâmina, não era a mais conhecida Gilette, mas da marca Valete, mais resistente. Sua barba, muito densa e forte assim o exigia. Aquelas lâminas eram poupadas e afiadas numa tira de couro guardada junto com seu kit de barba numa caixa de goiabada – de madeira. Ah, lembrei-me de outra cena doméstica que ele protagonizava. Éramos loucos por açúcar, e quando não havia sobremesa, ele abria uma embalagem desse doce. Nós ficávamos na expectativa, salivando, enquanto ele tirava com uma faca os grampos da tampa. Colocava a barra num prato raso e ia partindo fatia por fatia, enquanto mamãe lhe alcançava nossos pratos.
Seu senso de economia funcionava admiravelmente. Pudera! Ele foi um ótimo profissional, contador da Prefeitura, perito em fazer orçamentos. E no lar nada de essencial nos faltava, mas ele combatia todo o desperdício. Dava gosto ver seu prato depois das refeições. Costumava dizer, fazendo graça, que funcionário público tem que roer os ossos, e assim ele fazia.
O expediente na Prefeitura era em dois turnos, o da tarde começando às duas horas. Depois do almoço, sobrava-lhe um tempinho para uma soneca de janelas abertas para não perder a hora. Ele e a mamãe ficavam ouvindo as novelas do rádio deitados. Duvido que soubessem da trama a metade, pois o sono atrapalhava. Quando se ouvia o barulho das chaves tilintando no molho que ele usava no cinto, sabíamos que ele já levantara e estava pronto para retornar ao trabalho.
Voltava à tardinha, e então se dedicava aos assuntos do lar. Conferir o caderno do armazém, ouvir os relatos do dia dos filhos e da esposa, assinar os boletins do colégio – e que satisfação a minha quando lhe apresentava as notas altas! Papai se mostrava satisfeito, mas nunca me incentivou a competir com os colegas pelo primeiro lugar. E eu lhe agradeço também por mais esse traço de seu caráter. Ele sempre nos deixou escolher nossos caminhos, sem pressão, mas infundindo-nos sua confiança. Sempre dizia que deixaria como nossa herança a educação. E assim foi, mas muito mais do que isso. Todos os  valores que norteiam nossos caminhos.
À noite, antes de irmos para a cama, havia o beijo e o pedido de bênção. Dormíamos tranquilos, não antes de ouvi-lo passar as trancas nas portas da frente e da cozinha e verificar os ferrolhos das janelas. Nas noites de tempestade seus cuidados com a segurança da casa eram ainda maiores.
Domingos de visita aos avós, caminhando no meio da rua, nós na frente e eles seguindo de braço dado atrás, naquele diálogo interminável de um casal feliz.
Ou nos levava a um piquenique. A pé, nas cercanias da cidade. Ele fazia um churrasco, e era tudo tão gostoso.
Pequenos flashs ficam pipocando na minha memória, e eu vejo aquela figura inesquecível trepado numa cadeira meio capenga, com a doce companheira firmando-a, enquanto ele trocava alguma lâmpada queimada. Ou trocando fuzíveis no “contador” da sala., que estavam sempre queimando. Nossa rede elétrica era um desastre na época. Noutros momentos, recordo-o puxando o balde do poço onde ele colocara garrafas de refrigerante ou apenas água para refrigerar. As bebidas ficavam na temperatura certa para os nossos suaves verões.
Estas são lembranças apenas de minha infância e começo da adolescência. Quando todos, pais e irmãos coabitávamos debaixo daquele teto abençoado.
A vida nos levou a outros lares, e a figura do nosso pai foi ganhando novas dimensões, de avô, de amigo, de companheiro em todas as horas, de exemplo. E enchendo-nos de muito carinho e orgulho de sermos seus filhos.
Posso dizer com certeza que nunca nenhum de nós, seus filhos, teve crises de rebeldia na adolescência. Nunca o recriminamos por nada. E todos os dias até hoje, lhe agradecemos, e a nossa querida mãe, pelos caminhos que nos ajudaram a escolher na vida. Sermos seus filhos foi um “privilégio”, como diz minha querida amiga Rita.



sexta-feira, 9 de agosto de 2013

AS COISAS TÊM ALMA?






Coisa tem alma? Depende. Às vezes me surpreendo ouvindo o que me dizem objetos que acumulei na vida e me contam estórias... Eles me remetem a tempos idos, lembram pessoas e fatos que não consigo ou não desejo esquecer.
Rezando diante da imagem do Coração de Jesus, devotamente colocado acima da lareira da sala, revejo com os olhos da saudade minha tia, de quem o herdei, rezando diante dele. E sinto que aquela imagem, na sua estrutura de papel, vidro e moldura, não é apenas um objeto inerte. Ele guarda tanta energia, tanta fé e também muitas lágrimas e pedidos de ajuda.  Por isso minhas orações me dão a esperança de serem atendidas.
A vida tem suas fases, e da infância passamos à juventude, à maturidade, à velhice. Mas sempre fica alguma coisa de cada etapa manifestando-se em nossa maneira de agir e encarar as coisas. Por isso aceito certas manias que estou adquirindo e o meu gosto pelas relíquias que me cercam.
Nestas noites frias de nosso inverno, achei bem escondidinha num baú uma peça de meu enxoval de noiva, que passei a usar agora. Uma “maianita” (assim se dizia e não sei de que língua ela vem) tricotada pela Chica em nossos serões de conversa e cafezinho, no antigo Hotel do Comércio. Revejo com saudade as figuras queridas da Elsa, da Amélia, da Lindóia, da Ana Maria, às vezes a Norma, depois que atendia no balcão de doces do cinema de seu pai. Todas já disseram seu adeus definitivo. Fazíamos tricô, e as conversas sobre o mundo e nossas vidas, cada uma exercendo uma profissão, bancária, comerciária, professora, tricoteira, eram variadas. Não se resumiam em falar nos alunos, como em reuniões de colegas minhas, também apaixonadas pela profissão. Mas nas noites em que o cinema exibia novos filmes, não contassem comigo e com a Elsa. Era um de nossos hobbies.
Hoje o sensato é ficar em casa para fugir do frio e da umidade do inverno. Cada uma na sua casinha, como diz minha mana Duty, e a companhia são os personagens das novelas. E se todas as irmãs, agora viúvas e com os filhos criados, passassem a morar junto, não seria o ideal? Mas como abandonar nosso cantinho, nossos guardados que tentamos diminuir a cada faxina, mas que formam o relicário de nossas vidas?
São dilemas que a gente vai empurrando com a barriga até que eles se resolvam por si mesmos. Até lá, vamos conservar nossas lembranças e a cada dia tirar o pó dos objetos que as representam. Pendurados nas paredes, colocados de enfeite na mesinha da sala, sobre a cômoda do quarto, nas cristaleiras e armários de livros, ninguém os tire dali.  Eles são pedaços de nós e falam de coisas que só nós entendemos.