domingo, 22 de maio de 2016

NUM DOMINGO CHUVOSO




Chove a cântaros. Além da chuva, relâmpagos e trovões. Onde estão a vela benta e os fósforos? Quem sabia do “esconderijo” era a tia Neusa. Perdendo alguma coisa, precisava recorrer a ela e a Santo Antônio, e logo encontrava.
Agora aos domingos, a casa fica vazia. Só eu. Ainda bem que os celulares modernos não nos deixam isolados. A todo instante chamam de todos os cantos. Filhos, irmãos, amigas. “Fica em casa, mãe. Te cuida. As gripes não estão de brincadeira.” É mesmo. E a ameaça de pneumonia tem sido o terror das pessoas da “feliz idade”. Derrubam a gente.
O que fazer num dia assim? Ler um bom livro, ligar a TV, bordar? Além de atender aos chamados do celular que não sossegam?
Resolvi vasculhar as caixas de cartas, cartões de felicitações e fotos antigas da família guardadas por minhas tias falecidas. Essas lembranças ficaram comigo, e eu pretendia examiná-las antes de dar-lhes um fim, pois as lembranças que venho acumulando das novas gerações – uma infinidade de fotos e convites de casamentos e formaturas – exigem o espaço.
Fiquei a manhã inteira nessa tarefa que me trouxe doces recordações. Lembrei essas pessoas queridas e trechos de suas vidas ali celebrados. Achei um caderninho com dados da família de meus avós paternos, do casal e de seus treze filhos, anotados por tia Duca na sua bela caligrafia. As datas de nascimento e morte de cada um deles. Mais uma vez quase cheguei às lágrimas recordando a morte de tio Zalmiro, tão jovem e que prometia tanto na sua bondade e zelo pelos pais, e que o tifo arrebatou sem dó nem piedade. Não cheguei a conhecê-lo, mas me entristecia quando minha mãe falava nele. Assim como não conheci outros irmãos seus que morreram de uma dessas duas doenças fatídicas, tifo ou tuberculose, que eram as mais temidas da época, além da sífilis. Ainda não havia antibióticos.
Procurei alegrar-me com as fotos de recém-nascidos ou de casamentos, tentando adivinhar que crianças eram aquelas, e admirando os trajes das noivas, bem mais simples dos de agora.
Foi quando encontrei uma carta cuidadosamente guardada em seu envelope original endereçada à tia Duca. A tia tão meiga e calada, que mostrava um carinho especial pelos sobrinhos. Ela se alegrava com minhas visitas e sempre tinha algo a oferecer-me, doce ou fruta, que eu sentia ser a expressão de seu afeto. Pois essa carta era de um homem  lamentando ter havido um desencontro entre os dois. E não se conformava de não havê-la encontrado no baile que estivera em seus planos.
Pois é, a tia, de quem nunca se ouvira dizer que tivera um namorado, guardara esse segredo até o fim de sua vida. Lembrei em parte uma poesia – não sei mais de quem – que falava assim: “Poupai a ingenuidade delicada daqueles que amaram sem nunca dizer nada, e dos que foram amados sem saber.”
Anna Zoé Cavalheiro





quarta-feira, 4 de maio de 2016

MÃES, ONTEM E HOJE






Lembro nesta data Dona Chiquinha, a parteira de outras eras. Ela foi por muitas décadas a figura central dos nascimentos nas famílias caçapavanas. Sempre de preto - costume das viúvas de então - ela chegava com uma maleta que as crianças da casa tinham a maior curiosidade em saber o que continha. Mas continuava o mistério, pois só era aberta no quarto da parturiente. O médico era chamado apenas nos casos complicados.
Na casa de meus pais, todos os anos, alguma tia vinha da campanha para o nascimento de mais um filho. Uma delas teve dez, e eu pude assistir, do lado de fora do quarto, a uma meia dúzia de primos que nasceram ali.
A noite transcorria com as mulheres da casa transitando entre o quarto fechado e a cozinha, carregando bandejas de chá e bolachas, chaleiras com água quente, e muitas vezes um café completo para alimentar a parteira nas longas noites de espera. A conversa rolava solta lá dentro, girando sobre casos de outros partos. Enquanto isso, a criançada ficava colada à porta tentando surpreender a chegada da cegonha.
Nos dias seguintes podíamos admirar o bebê e ver a mãe, aliviada e orgulhosa, recebendo as refeições na cama, de resguardo. Parece que levava mais de uma semana.  Caldo de galinha, canja, comidinha leve e café ou canjica com leite era o que não faltava. Para fortalecer e criar leite. Lembro tia Laura, que teve nove filhos, aproveitando esses dias para ler romances bem açucarados na cama, tendo ao seio o recém-nascido.
As crianças da casa eram encarregadas de participar o novo nascimento e para isso batiam de porta em porta da vizinhança: “A mãe mandou dizer que tem mais um menino – ou menina – às ordens.”
Seguiam-se as visitas das amigas e parentas para conhecer o bebê e trazer-lhe uma lembrancinha. Babeiros delicadamente bordados, sabonetes, talcos, toalhas macias, chupetas, não faltavam.
Minha mãe costumava acender álcool na banheirinha de latão, antes do banho. E nós éramos os espectadores divertidos que gostávamos de sentir aquele cheirinho misturado ao do talco, do sabonete e das roupinhas até então guardadas numa malinha perfumada.
Hoje esses rituais são mais simplificados, as crianças nascem nas Maternidades,  não há quase irmãos para receber o novo membro da família. E. Mamãe e papai têm sua carreira profissional para atender, vivemos em outro mundo. Mas o tempo dedicado à profissão é compensado pelo carinho e horas de aconchego com o filhinho. As noites mal dormidas dos primeiros tempos do bebê ainda castigam a nova mãezinha, mas ela agradece todos os dias a glória da maternidade vendo aquele serzinho amado crescer e aprender a viver. Ela sente que seu amor é o maior estímulo para seu desenvolvimento físico e emocional.
Quando observo minha netinha de dois anos às voltas com a mamadeira para as bonecas, usando as panelinhas e talheres para fazer comidinha e dar-lhes na boca, vejo que este mundo ainda tem conserto. Porque é o amor de mãe que vai mostrar o que vale uma vida, tratada como uma frágil plantinha que vai crescer, fortificar-se e dar frutos. E que esses vão ser da melhor qualidade.
Anna Zoé Cavalheiro