sexta-feira, 28 de março de 2014

FUMAÇAS E LEMBRANÇAS







Quando um grupo de jovens me observa com peninha da pobre idosa, rio por dentro porque eu é que fico com peninha deles. “Pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei...”  Vou lembrando quanta coisa vivi, e eles não chegaram a experimentar. Uma viagem de trem “Maria Fumaça”, por exemplo. Era uma aventura! Cheia de peripécias, desconfortos, mas também com muitas surpresas agradáveis, principalmente para os jovens daquela época que podiam conhecer pessoas e até iniciar um romance de amor nas longas horas da travessia. Tudo podia acontecer, até extraviar a bagagem, mas era  bom poder caminhar pelos vagões, almoçar no carro restaurante – quando o dinheiro chegava – comprar revistas e refrigerantes dos funcionários que transitavam pelos corredores.
De Cachoeira do Sul - um dos destinos para os estudantes do segundo grau de Caçapava - até Porto Alegre, eram sete horas de marcha batida, isso se não houvesse algum impedimento. E a fumaça ia entrando pelas janelas e colando-se às nossas roupas. As chegadas às estações desembarcando ou embarcando passageiros, recolocando a água que faltava ou o combustível para a locomotiva... A gente sabia de cor o nome de cada uma, e se não soubesse um funcionário passava de vagão em vagão anunciando.
Mas para a nossa tia que morava em Porto Alegre e veraneava com nossos Dindos em Cachoeira, a viagem de volta não tinha nada de fácil. Fim de verão, fim de férias de estudantes que voltavam a Porto Alegre – era só onde havia Universidades naquela época – os trens chegavam de Santa Maria lotados, e os passageiros do caminho tinham de viajar de pé. Titia que tinha dificuldade de locomoção e bastante idade não podia correr esse risco.
Seu filho vinha buscá-la – ele era ferroviário e tinha passe livre nas suas férias – e ela já o esperava pronta, malas de muita roupa, valises com remédios e frasqueiras cheias de cosméticos, pois era bem vaidosa – enfim, uma bagagem de muito peso!
Nós, as jovens da casa, éramos convocadas para ajudar a carregar os embrulhos até a caminhonete do tio e de desembarcá-los na estação ferroviária.
 Por duas vezes, em que o movimento de passageiros foi muito intenso, o trem  vindo de Santa Maria já chegou superlotado.  Foi só o trabalho de levar a pobre passageira e o filho até a gare, cheios de bagagens, e dar volta para casa. Nossa tia ia murchando, ficando deprimida, pois sempre no final das estadias ela se desentendia com alguém da casa e ficava desconfiada. Chegava bem alegre e tinha a mania de gracejar com uma ou outra das pessoas, geralmente as empregadas, e no final sentia que as incomodara.
A tia que a recebera com carinho e atenções um mês atrás também ia ficando irritada. A rotina se alterava naqueles dias, o almoço tinha de ser servido mais cedo, havia tralhas fora do lugar, e ela não gostava dessa desordem.
Depois dessa tentativa fracassada de embarque, a família se reuniu para deliberar. E a solução encontrada foi que o filho ferroviário fosse até Santa Maria no outro dia e de lá viesse com o lugar já marcado.
Chegando a hora, todos a postos para as devidas funções, chegamos à gare e ficamos à espera do trem. Ele até que não atrasou, e sua permanência na estação, conforme estávamos cansados de saber,  era de apenas três minutos. Dessa vez ele veio com acréscimo de vagões, e os destinados à primeira classe, os da frente, avançaram bastante além da plataforma. Uma nova dificuldade para nossa tia, que teria de dar um passo largo para subir as escadinhas. Tudo bem, a gente dava um jeito. O imprevisto foi que o filho guardador do lugar não aparecia nunca, e os minutos corriam depressa. O trem já dava seu apito de despedia, e nada de aparecer o rapaz. Nossa tensão foi subindo assustadoramente. A tia de Cachoeira não se conteve e começou a gritar em altos brados: Gustavo! Nós, jovens, loucas de vergonha daquela cena! Eis que no último minuto ele aparece numa das janelas de um vagão com os cabelos revoltos de quem se acordara de um belo sono. Os momentos seguintes nem sei como descrever. Todo o mundo corria, ajudava a passageira a embarcar no último vagão – a coitada teria de caminhar bastante até o seu destino – e colocava sua pesada bagagem dentro do trem. Foi uma luta, mas tivemos a satisfação da vitória.
Até que tivéssemos notícias daquela movimentada viagem, e da saúde delicada da tia, passaram-se muitos dias. Telefone era coisa rara, e o Correio, a única via de comunicação possível, andava a passos lerdos. De trem...
Dizer que não invejo os jovens de hoje? Mentira. Claro que gostaria de sentir agora o que eles sentem, esse arroubo nos amores, atirar-se de corpo e alma às novas emoções, sem medir as consequências. O coração envelhece, mas ainda


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