quinta-feira, 3 de maio de 2012

QUANDO AS MISSAS ERAM REZADAS EM LATIM

O sino toca. Termina a missa das sete. A casa se agita. As cobertas são atiradas de lado. A água gorgoleja do jarro para a bacia. No grande fogão a lenha a cozinheira põe o leite a ferver, espevita o fogo, o gato ronronando languidamente em suas pernas. E o leite na panela grande - nada de subir. Siá Eva chegou da missa das sete, põe sua cadeira perto do fogo e espera pacientemente o café. O leite ferveu, já não é sem tempo, a fome apertou. Finalmente a família está pronta para a missa das dez. Na rua está frio. Lá na esquina vai dona Cândida e logo atrás a Ritinha, a Izabel... É fácil reconhecê-las por seus casacos de inverno. Elas os conservam anos e anos, passando-os depois para suas empregadas ou parentas mais pobres. Siá Eva, nossa antiga lavadeira, vem todos os domingos para o café depois da missa. Vestindo o casaco de gola de carapinha que nossa mãe lhe deu. Até se parece com seu cabelo engrouvinhado. Siá Eva se foi. Ainda lembro seu ranchinho asseado e os de outras “siás”: as roupas usadas das mamães da Paróquia bem conservadas; as latinhas de gêneros sempre providas. Hoje os ranchinhos são tantos! Sujos, miseráveis, caindo. Seus moradores não vêm mais à missa das sete. Sentem fome, mas não podem visitar as ex-patroas vizinhas da igreja para o café da manhã. Eles são tantos, não caberiam. O leite ferve rápido no fogão a gás. Mas é contado, comprado em caixinhas, só dá para a família. Não há mais gatos preguiçosos enroscando-se nas pernas da gente. Agora, só cachorrinhos ligeiros, barulhentos, convidando o dono a sair. As filhas de donas Cândidas renovam seus abrigos de inverno todos os anos. O Padre fala em repartir o pão. Mas durante a homilia, cada paroquiano pensa em suas despesas: a prestação da casa aumentou. O prazo para pagar o automóvel diminuiu. Os filhos precisam de óculos, cursinhos pré-vestibulares, aparelhos para corrigir os dentes, bicicletas, vestido de debutante, tanta coisa! Que vida apertada para manter tudo isso! E aquela dorzinha no peito, a sufocação! Ai, os enfartes... A missa termina. Cada família embarca em seu automóvel e sai a passear. Nos subúrbios, as favelas, os ranchos: primeiro os de tábuas, depois os de lata. Por fim, até de papelão. Ali estão os filhos, os netos das siás Evas do “tempo das missas rezadas em latim”. Como são eles? Quantos são? Cruzar o olhar com qualquer um mete medo. Quanta revolta sentida! Mas, como repartir o pão? O salário mal chega... ‘

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