Um perfume pode evocar pessoas e acontecimentos distantes. A gente lembra
de repente alguém sem dar-se conta de que foi pelo aroma que passou que ela se
fez presença.
Mas dessa vez foi diferente: não tinha marca, não era da Coty nem da Chanel.
Nem era perfume, mas sim o cheiro mais gostoso que senti nos últimos tempos – o
cheiro da figada cozinhando no fogo. No quarteirão todo, aquela fumacinha
apetitosa impregnava o ar. Não se via ninguém à vista, mas dava para adivinhar
um punhado de mulheres, na hora mais quente do dia de verão, aprontando a
tachada do doce que levou por muitas décadas a marca de Caçapava.
Só quem participou de uma jornada igual a essa pode imaginar o trabalho
que dá. Descascar os figos – tarefa proibida para os alérgicos -; pesar a
massa, calcular a dosagem do açúcar, preparar o tacho, os vasilhames que vão
servir de embalagens e, o pior, ficar uma tarde inteira à beira do fogo de chão
mexendo aquele peso todo com a pá, até ficar no ponto.
Pois aquele cheirinho especial lembrou-me Siá Eva, aquela criatura de
idade indefinida, vestidinho de algodão, pano amarrado à cabeça, o suor
escorrendo do rosto ao pescoço. Sempre com um lenço à mão para enxugar-se de
vez em quando. Não
se queixava de nada, e até gostava da companhia das crianças à sua volta, para
quem contava histórias de lobisomem, enquanto o doce teimava em não ficar
pronto. Siá Eva era assim: humilde, prestativa, bem humorada, o quebra galho
das famílias, onde fazia faxinas e ajudava em dias especiais, como na preparação
de quitutes para as festas. Mas não se empregava como doméstica, era livre como
um pássaro.
Nos dias de tacho, ficava da manhã à noite na lida. Não podia tomar água.
Com o calor do fogo, podia dar espasmo. Tomava café preto ou chimarrão para
aplacar a sede.
Quando era marmelada, o trabalho complicava. Havia a marmelada branca, a
rosada e a marmelada preta. Ficava tão preta, mesmo, que até parecia a siá Eva.
E era a última que aprontava, porque o seu segredo estava na dosagem da água,
colocada pouco a pouco. Quando parecia estar pronta, a dona da casa dizia “mais
água”, e começava tudo de novo até tomar consistência.
Aí siá Eva começava a falar no marido Pedro – o grande amor de sua vida.
Que costumava deixar tudo em casa arrumadinho para ele. Era só esquentar a
marmita. Que o Pedro estava na lavoura de alguém, voltava de noite. Filhos não
tinha, mas que marido bom! Ela queria
morrer antes dele, não sofrer a sua saudade.
Coitadinha! A vida não quis assim. Ele foi primeiro.
Siá Eva saía já noite com uns bons trocados e a prova do doce.
Cuidado, não vá comer figada do dia, faz mal, recomendava a dona da
tachada.
Não tinha perigo. Ela reservava a figada inteirinha para o Pedro.
As mocinhas românticas de então ficavam imaginando como aquela mulher tão
comum e apagada, sem beleza nem vaidade, podia ser a protagonista de uma
história de amor.
Siá Eva continua vivendo no seu idílio com Pedro, na fumacinha cheirosa
que sai dos tachos de figada e marmelada, agora tão raros. Mas ainda existem
aqui e ali, graças à coragem das mulheres caçapavanas que honram a tradição da
terra.
É assim a vida. Ainda bem!
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