quarta-feira, 6 de maio de 2015

A VOZ DO VENTO





O vento daquela noite pareceu-me o Minuano. Há quantos anos não o escutava. Lembrou-me cenas de minha infância. Assobiando pelas frestas das janelas, batendo as velhas portas fechadas com trancas de ferro, mesmo assim ele invadia os domínios da casa, fazendo minha mãe levantar para cobrir-nos melhor, e meu pai verificar se as aberturas estavam bem protegidas.
Esse vento gaúcho passava assustadoramente pela cidade e, na praça da Matriz, vergastava as raquíticas árvores que parecia nunca crescerem.
Dentro da igreja, ele soprava gelado, fazendo as devotas levantarem as golas de seus pesados casacos de lã. Mamãe, com o seu de carapinha, “herdado” de uma irmã sua, e mais tarde “legado” à siá Eva, nossa lavadeira – como diria o sábio Lavoisier, “nada se perde” -  nem por isso deixava de ir diariamente à missa das sete. Suas preces, tenho a certeza, não perderam a validade. Foram aceitas e atendidas ainda hoje.
O tempo passa. E o vento vai levando esses ecos para longe.
A Igreja Matriz de então era sombria. E os nichos dos altares, principalmente do altar mor – cheio de degraus de madeira trabalhada, de um azul forte, porém já desbotado – davam tratos à imaginação infantil. Era como se Deus, os santos e todos os espíritos celestes ali habitassem.
O incenso que se elevava às alturas fazia pensar em anjos voando em torno do altar.
As ladainhas em latim, enquanto o vento soprava, soavam como invocações misturadas à tênue fumaça do incenso em direção aos céus. 
Lá do coro vinham os sons do harmônio e das vozes dos cantores nos seus hinos de louvor. Minha mãe costumava dizer que cantar é rezar duas vezes.
No púlpito, o padre fazia a pregação sem microfone, e até os fiéis que ficavam lá no fundo o escutavam. Ele falava da misericórdia divina, mas também se demorava a descrever os castigos eternos para os pecadores não arrependidos. E alertava sobre os perigos das modas, bailes, carnaval e todas as festas pagãs. Na igreja, as mulheres não podiam entrar de mangas curtas, decotes ou trajes impróprios. E usavam véu, branco para as solteiras e preto para as casadas. As mocinhas casadoiras ficavam invejando as recém casadas quando  mudavam de cor o seu véu.
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Os sinos badalavam o Toque de Finados, tão triste, quando um corpo ia chegando à igreja para ser encomendado. Os homens mais fortes da família e amigos subiam a escadaria carregando o caixão e depois o levavam ao cemitério em procissão a pé.
Mas nas comemorações religiosas, o sino, ouvido até as chácaras mais próximas, chamava festivamente os fiéis. Seu Américo, o fogueteiro oficial da Matriz, esmerava-se no seu ofício, e os moleques corriam atrás dos cartuchos vencidos.
Nos domingos, a missa das sete destinava-se a quem desejava comungar, pois tinha de estar em jejum. Seguidamente alguma senhora desmaiava, de fome, ou era uma grávida que se sentia mal. Seu Osvaldo Medeiros costumava acudi-las, pois, além de ser muito educado e solícito, era um dos únicos homens presentes àquela hora.
Na missa das dez, as freiras do colégio das Irmãs ocupavam lugares reservados com suas alunas internas.
 Depois da celebração, as crianças ficavam para o catecismo, que a dona Vicentina – uma santa – com dona Cota e outras senhoras ensinavam com todo o zelo. Catequista e seus alunos ocupavam duas a três fileiras de bancos, e por todo o espaço a gente ouvia aquelas vozes em tom bem baixo para não atrapalhar os grupos próximos.
Estas senhoras faziam parte, também, da arrumação e conservação da igreja. Lembro de ver dona Vicentina subida nos altares arrumando simetricamente os vasos com flores e os castiçais. Suas “canelas” fininhas sobressaindo do vestido comprido, a magreza de seu corpo, parecia que ela só tinha espírito. De caridade e oração.
As comemorações religiosas movimentavam a cidade. Festas do Divino, com as figuras do Imperador, da Imperatriz e seu séquito abrilhantavam as novenas e procissões. Anjinhos também. Havia quermesses em torno da igreja e leilões nos salões cedidos graciosamente pelos donos.
Os fazendeiros doavam capões e ovelhas, e os comerciantes contribuíam com brindes de suas lojas.  E o povo se divertia.
A Igreja Matriz era o centro da vida social da cidade. E da fé do povo caçapavano.

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