O vento daquela noite pareceu-me o Minuano. Há quantos anos não o escutava. Lembrou-me cenas de minha infância. Assobiando pelas frestas das janelas, batendo as velhas portas fechadas com trancas de ferro, mesmo assim ele invadia os domínios da casa, fazendo minha mãe levantar para cobrir-nos melhor, e meu pai verificar se as aberturas estavam bem protegidas.
Esse vento gaúcho passava assustadoramente pela cidade e, na praça da
Matriz, vergastava as raquíticas árvores que parecia nunca crescerem.
Dentro da igreja, ele soprava gelado, fazendo as devotas levantarem as
golas de seus pesados casacos de lã. Mamãe, com o seu de carapinha, “herdado”
de uma irmã sua, e mais tarde “legado” à siá Eva, nossa lavadeira – como diria
o sábio Lavoisier, “nada se perde” - nem
por isso deixava de ir diariamente à missa das sete. Suas preces, tenho a
certeza, não perderam a validade. Foram aceitas e atendidas ainda hoje.
O tempo passa. E o vento vai levando esses ecos para longe.
A Igreja Matriz de então era sombria. E os nichos dos altares,
principalmente do altar mor – cheio de degraus de madeira trabalhada, de um
azul forte, porém já desbotado – davam tratos à imaginação infantil. Era como
se Deus, os santos e todos os espíritos celestes ali habitassem.
O incenso que se elevava às alturas fazia pensar em anjos voando em torno
do altar.
As ladainhas em latim, enquanto o vento soprava, soavam como invocações
misturadas à tênue fumaça do incenso em direção aos céus.
Lá do coro vinham os sons do harmônio e das vozes dos cantores nos seus hinos
de louvor. Minha mãe costumava dizer que cantar é rezar duas vezes.
No púlpito, o padre fazia a pregação sem microfone, e até os fiéis que
ficavam lá no fundo o escutavam. Ele falava da misericórdia divina, mas também
se demorava a descrever os castigos eternos para os pecadores não arrependidos.
E alertava sobre os perigos das modas, bailes, carnaval e todas as festas
pagãs. Na igreja, as mulheres não podiam entrar de mangas curtas, decotes ou
trajes impróprios. E usavam véu, branco para as solteiras e preto para as
casadas. As mocinhas casadoiras ficavam invejando as recém casadas quando mudavam de cor o seu véu.
.
Os sinos badalavam o Toque de Finados, tão triste, quando um corpo ia
chegando à igreja para ser encomendado. Os homens mais fortes da família e
amigos subiam a escadaria carregando o caixão e depois o levavam ao cemitério
em procissão a pé.
Mas nas comemorações religiosas, o sino, ouvido até as chácaras mais
próximas, chamava festivamente os fiéis. Seu Américo, o fogueteiro oficial da
Matriz, esmerava-se no seu ofício, e os moleques corriam atrás dos cartuchos
vencidos.
Nos domingos, a missa das sete destinava-se a quem desejava comungar,
pois tinha de estar em
jejum. Seguidamente alguma senhora desmaiava, de fome, ou era
uma grávida que se sentia mal. Seu Osvaldo Medeiros costumava acudi-las, pois,
além de ser muito educado e solícito, era um dos únicos homens presentes àquela
hora.
Na missa das dez, as freiras do colégio das Irmãs ocupavam lugares
reservados com suas alunas internas.
Depois da celebração, as crianças
ficavam para o catecismo, que a dona Vicentina – uma santa – com dona Cota e
outras senhoras ensinavam com todo o zelo. Catequista e seus alunos ocupavam
duas a três fileiras de bancos, e por todo o espaço a gente ouvia aquelas vozes
em tom bem baixo para não atrapalhar os grupos próximos.
Estas senhoras faziam
parte, também, da arrumação e conservação da igreja. Lembro de ver dona
Vicentina subida nos altares arrumando simetricamente os vasos com flores e os
castiçais. Suas “canelas” fininhas sobressaindo do vestido comprido, a magreza
de seu corpo, parecia que ela só tinha espírito. De caridade e oração.
As comemorações religiosas movimentavam a cidade. Festas do Divino, com
as figuras do Imperador, da Imperatriz e seu séquito abrilhantavam as novenas e
procissões. Anjinhos também. Havia quermesses em torno da igreja e leilões nos
salões cedidos graciosamente pelos donos.
Os fazendeiros doavam capões e ovelhas, e os comerciantes contribuíam com
brindes de suas lojas. E o povo se
divertia.
A Igreja Matriz era o centro da vida social da cidade.
E da fé do povo caçapavano.
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